segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Dobrada à moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


Álvaro de Campos

(jn)

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

A Abelha

"A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela

À vista que não olha,


Não mudou desde Cecrops. Só quem vive

Uma vida com ser que se conhece

Envelhece, distinto

Da espécie de que vive.


Ela é a mesma que outra que não ela.

Só nós - ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte! -

Mortalmente compramos

Ter mais vida que a vida."

Ricardo Reis

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

O amor é uma companhia.




"O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.

Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio."



Alberto Caeiro

XIII - Leve

"Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo."

Alberto Caeiro

...

.

.
Playground love, Air

*


.
Cello Song, Nick Drake



margarida sugeriu...

(lbc)

Soneto já antigo

Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de
dizer aos meus amigos aí de Londres,
embora não o sintas, que tu escondes
a grande dor da minha morte. Irás de

Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes...
que eu nada que tu digas acredito),
contar àquele pobre rapazito
que me deu tantas horas tão felizes,

Embora não o saibas, que morri...
mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar,
nada se importará... Depois vai dar

a notícia a essa estranha Cecily
que acreditava que eu seria grande...
Raios partam a vida e quem lá ande!

Alvaro de Campos
(lbc)

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Vilegiatura

O sossego da noite, na vilegiatura no alto;
O sossego, que mais aprofunda
O ladrar esparso dos cães de guarda na noite;
O silêncio, que mais se acentua,
Porque zumbe ou murmura uma coisa nenhuma no escuro ...
Ah, a opressão de tudo isto!
Oprime como ser feliz!
Que vida idílica, se fosse outra pessoa que a tivesse
Com o zumbido ou murmúrio monótono de nada
Sob o céu sardento de estrelas,
Com o ladrar dos cães polvilhando o sossego de tudo!

Vim para aqui repousar,
Mas esqueci-me de me deixar lá em casa,
Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente,
A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.

Sempre esta inquietação mordida aos bocados
Como pão ralo escuro, que se esfarela caindo.
Sempre este mal-estar tomado aos maus haustos
Como um vinho de bêbado quando nem a náusea obsta.

Sempre, sempre, sempre
Este defeito da circulação na própria alma,
Esta lipotimia das sensações,
Isto...

(Tuas mãos esguias, um pouco pálidas, um pouco minhas,
Estavam naquele dia quietas pelo teu regaço de sentada,
Como e onde a tesoira e o ideal de uma outra.
Cismavas, olhando-me, como se eu fosse o espaço.
Recordo para ter em que pensar, sem pensar.
De repente, num meio suspiro, interrompeste o que estavas sendo. Olhaste conscientemente para mim, e disseste:
"Tenho pena que todos os dias não sejam assim" -
Assim, como aquele dia que não fora nada ...

Ah, não sabias,
Felizmente não sabias,
Que a pena é todos os dias serem assim, assim:
Que o mal é que, feliz ou infeliz,
A alma goza ou sofre o íntimo tédio de tudo,
Consciente ou inconscientemente,
Pensando ou por pensar
Que a pena é essa ...

Lembro fotograficamente as tuas mãos paradas,
Molemente estendidas.
Lembro-me, neste momento, mais delas do que de ti.
Que será feito de ti?
Sei que, no formidável algures da vida,
Casaste.
Creio que és mãe.
Deves ser feliz.
Por que o não haverias de ser?

Só por maldade...
Sim, seria injusto...
Injusto?

(Era um dia de sol pelos campos e eu dormitava, sorrindo.)

(...)

A vida...
Branco ou tinto, é o mesmo: é para vomitar.

in Álvaro de Campos

domingo, 11 de novembro de 2007

Se te Queres

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?

Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.

Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...

Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.

És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Álvaro de Campos

(lbc)

A Tabacaria

"(...) Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder,
continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira.
Vou à janela
.O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."

Álvaro de Campos, 15-1-1928

Lisbon Revisited (1923)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos

(lbc)

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

5º Império


...

Obra de Fernando Pessoa

disponível para acesso gratuito em

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaObraForm.do?first=50&skip=0&ds_titulo=&co_autor=&no_autor=Fernando%20Pessoa&co_categoria=2&pagina=1&select_action=Submit&co_midia=2&co_obra=&co_idioma=&colunaOrdenar=DS_TITULO&ordem=null

(lbc)

Poemas Inconjuntos (1913-1915)

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.

Alberto Caeiro
Publicado em Atena nº 5, Fevereiro de 1925


(lbc)

Tenho

Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu...
Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.

Álvaro de Campos

(ln)

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Na casa defronte

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.

Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada! Não sei...
Um nada que dói ...


Álvaro de Campos

Ainda a Mensagem *

Mar Português
Possessio Maris

Padrão

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala o vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.



(iv) * Desculpem mas nao consegui escolher só um poema. Escolher só três já foi complicado..

Mensagem

V - O Timbre

O Infante D. Henrique

Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras -
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.

(
iv)

Mensagem

III - As Quinas

Quinta
D.Sebastião

Louco, sim, louco porque quis grandez
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?


(iv)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Não esquecer!

Ensaio

Dia 6.11.2007 - 20 horas
FDUP

Trazer textos da obra de Fernando Pessoa

(lbc)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O Guardador de Rebanhos (partes VIII e IX))


(...)


VIII
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
«Se é que ele as criou, do que duvido» –
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

(...)

Alberto Caeiro


(lbc)

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

November

.


In Free Flow (2000)

(lbc)

O Guardador de Rebanhos (partes V e VI)

(...)
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
«Constituição íntima das cousas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
VI
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!...
(...)
Alberto Caeiro
Escrito entre 1911 e 1912
(lbc)

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

(ln)

Menino da sua mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe».

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mão. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece")
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.

Fernando Pessoa

in Pássaros do Sul, 1987
Música: Mafalda Veiga

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Trompe L'oil

“Lembras-te jóia, daquele bacalhau
que comemos em Viana do Castelo?
Parece que foi ontem mas já lá vão dez anos.
Ainda tinhas tu muito cabelo.

Chovia nesse dia. Bem me lembro.
Deixaste no comboio o guarda-chuva.
Quem te mandou levar a viagem toda
a fazer olhinhos à viúva?

Contos largos… Mas quando o bacalhau,
como tu disseste, deu à costa,
esqueceste a viúva e o guarda-chuva
e perguntaste e mim: góta num góta?

Oh jóia, e o azeitinho? Aquilo sim!
P’ra comer só no Norte, só no Norte.
E depois… na pensão… os pés juntinhos…
Foi mais forte que nós. Muito mais forte.”


In Biblioteca Infernal (2006)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Post de QUASE fim de semana

“Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
a distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é, quando há bruma
esperar por D. Sebastião,
quer venha ou não!
Grande é a poesia,
a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
flores, música, o luar, e o sol que peca
só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto,
é Jesus Cristo,
que não sabia nada de finanças,
nem consta que tivesse biblioteca...”

Fernando Pessoa
(in Biblioteca Infernal)

(ln)

Me gustas cuando callas


"Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.


Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.


Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.


Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.


Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto."



In Mulher ao Espelho (2004)

Ao Pablo, que docemente o disse em Português e nos deixou a "borboleta de sonho"...

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Ricardo Reis

Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,


Que quando te puserem

Nas mãos o óbolo último,


Ao abrirem-te as mãos

Nada te cairá.


(...)


Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,

Das mãos mal as olhaste.


Senta-te ao sol. Abdica

E sê rei de ti próprio.


(Odes de Ricardo Reis)

(iv)

Cartaz

Ricardo II de Wlliam Shakespeare

Propõe-se ida ao Teatro.

Em cena, no Teatro Nacional de S. João (sala do TECA), Ricardo II, de William Shakespeare, com encenação de Nuno Cardoso.

Interpretação: António Júlio, Carlos Pimenta, Cátia Pinheiro, Daniel Pinto, Flávia Gusmão, Gonçalo Amorim, João Pedro Vaz, João Ricardo, José Neves, Luís Araújo, Marta Gorgulho, Nuno Cardoso, Pedro Gil, Pedro Pernas, Wagner Borges

Produção do Teatro Nacional D. Maria II, com uma duração aproximada de 3h15 com intervalo, estará em cena entre 31 de Outubro e 4 de Novembro próximos.

Quem se anima?

Para mais informações acedam a www.tnsj.pt


R Ricardo II é uma peça extraordinária. Vejam, Shakespeare é sobretudo apaixonante – assim como qualquer artista – quando as suas criaturas se põem a viver a sua própria vida e levam o autor contra a sua própria vontade. Henrique de Bullingbrook leva Shakespeare contra a sua própria vontade no decurso de cenas maravilhosas que Shakespeare não pode subscrever: isso dá à peça uma tensão extraordinária.
P
Shakespeare é evidentemente por Ricardo?
R
Absolutamente. E, contudo, tem de fazer justiça a Bullingbrook e, mais do que isso, deve torná-lo real, humano, de modo que, subitamente, Bullingbrook ganha vida e atrai a si uma boa parte da peça. Vê-se Shakespeare a tentar retê-lo: nada a fazer, Bullingbrook está lançado! Shakespeare é muitas vezes submerso pelas suas personagens.

Orson Welles – Excerto de “Entrevista com Orson Welles, por André Bazin, Charles Bitsch e Jean Domarchi”. In A Política dos Autores. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976. p. 252.

(lbc)

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Lembrando a última apresentação do DireitoàCena

Lembrando a Biblioteca Infernal - de Zoran Zivkovic - que o Grupo estreou faz esta semana precisamente um ano.
«Jacinto empurrou uma porta, penetrámos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. [...] Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era pois a região dos Economistas. Avancei — e percorri, espantado, oito metros de Economia Política. Depois avistei os Filósofos e os seus comentadores, que revestiam toda uma parede, desde as escolas pré-socráticas até às escolas neopessimistas. Naquelas pranchas se acastelavam mais de dois mil sistemas — e que todos se contradiziam. Pelas encadernações logo se deduziam as doutrinas: Hobbes, em baixo, era pesado, de couro negro; Platão, em cima, resplandecia, numa pelica pura e alva. Para diante começavam as Histórias Universais.«Mas aí uma imensa pilha de livros brochados, cheirando a tinta nova e a documentos novos, subia contra a estante, como fresca terra de aluvião tapando uma riba secular. Contornei essa colina, mergulhei na secção das Ciências Naturais, peregrinando, num assombro crescente, da Orografia para a Paleontologia, e da Morfologia para a Cristalografia. Essa estante rematava junto de uma janela rasgada sobre os Campos Elísios. Apartei as cortinas de veludo — e por trás descobri outra portentosa rima de volumes, todos de História Religiosa, de Exegese Religiosa, que trepavam montanhosamente até aos últimos vidros, vedando, nas manhãs mais cândidas, o ar e a luz do Senhor.» Eça de Queirós, A Cidade e as Serras

«[...] Comecei a reflectir sobre qual será a função de uma biblioteca. No início, no tempo de Assurbanípal ou de Polícrates, talvez fosse uma função de recolha, para não deixar dispersos os rolos ou volumes. Mais tarde, creio que a sua função tenha sido de entesourar: eram valiosos, os rolos. Depois, na época beneditina, de transcrever: a biblioteca quase como uma zona de passagem, o livro chega, é transcrito e o original ou a cópia voltam a partir. Penso que em determinada época, talvez já entre Augusto e Constantino, a função de uma biblioteca seria também a de fazer com que as pessoas lessem...» Umberto Eco, A Biblioteca
«A biblioteca nasceu segundo um desígnio que permaneceu obscuro para todos através dos séculos e que nenhum dos monges é chamado a conhecer. Só o bibliotecário recebeu o seu segredo do bibliotecário que o precedeu, e comunica-o, ainda em vida, ao bibliotecário ajudante, de modo que a morte não o surpreenda privando a comunidade daquele saber. E os lábios de ambos estão selados pelo segredo. Só o bibliotecário, além de saber, tem o direito de se mover no labirinto dos livros, só ele sabe onde encontrá-los e onde repô-los, só ele é responsável pela sua conservação. Os outros monges trabalham no scriptorium e podem conhecer o elenco dos volumes que a biblioteca encerra.» Umberto Eco, O Nome da Rosa
(ln)

Eco

.

"Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?
Talvez que fosse à caça; quer fazer surpresa com alguma corça branca lá da floresta.
Era plo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher também, também chamou Adão.
Teve medo: Mas julgando fantasia chemou de novo: Adão? E uma voz de mulher também, também chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as setas todas, e a caça era nenhuma!
E ele a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ela fugiu-lhe.
- Outra que não Ela chamara também por Ele."


in Miscelânea Poética(2000) e Mulher ao Espelho(2004)

(lbc)

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Luzes

Em jeito de memória colectiva para a posteridade...

*
*


Teatro da Vilarinha, Porto (Dezembro de 2002)
Fotos de Rui Cunha

(lbc)

Dizem que é uma espécie de apresentação!

1. As origens

O Direito à Cena - Grupo de Teatro da Faculdade de Direito da Universidade do Porto foi criado em 1999, com a finalidade de, envolvendo simultaneamente alunos e docentes, ajudar à construção de uma ideia de Escola mais integrada, mais completa e mais madura.

O desejo de constituir um grupo de teatro a Faculdade de Direito da Universidade do Porto fez-se sentir desde o início da própria faculdade, em 1995. Contudo, só no Verão de 1999 se deu o passo decisivo: a Associação de Estudantes, contando com o apoio financeiro disponibilizado pelo Instituto Português das Artes do Espectáculo e pelo Conselho Directivo da Faculdade, promoveu a participação de docentes e discentes num curso de formação de actores ministrado pelo Balleteatro, que decorreu entre 11 de Novembro de 1999 e 30 de Abril de 2000, e que culminou com a apresentação de "Free Flow", o trabalho final, na Balleteatro Auditório.

Foram assim lançadas as bases para a criação do Grupo de Teatro da Faculdade – que veio a designar-se
direitoàcena.

Após esta primeira fase de formação, estavam criadas as condições para a passagem à fase seguinte, de exteriorização, trabalhando para aqueles que dão sentido ao teatro: o público.
Essa maioridade correspondeu simbolicamente à apresentação da peça de estreia, em Dezembro de 2000: o Processo, de F. Kafka.

2. Os objectivos

O DireitoàCena, Grupo de Teatro da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, tem como objectivos privilegiados os seguintes:

a) formação
Representando a cultura e o ensino importantes veículos de formação, o Grupo de Teatro da FDUP propõe-se contribuir para o despertar da cidadania e da vontade de conhecer e aprender.
Apresentando através da expressão dramática problemáticas jurídicas, que têm um marcante e directo reflexo na comunidade em geral, mas não só, o Grupo deseja abordar temas e provocar a sua discussão, suscitando a vontade de participação na construção de uma melhor sociedade.
Por outro lado, através de actividades paralelas à peça, o Grupo tentará despertar o interesse do seu público para assuntos de interesse cultural, relacionados com a arte dramática (por exemplo: divulgação das obras escritas pelo autor da peça escolhida para representar, divulgação das peças em cena na cidade do Porto, organização de palestras e tertúlias com profissionais do teatro, promoção de recitais de poesia, etc).

b) descentralização da produção teatral

Uma das dificuldades que se apontam à formação de um público de teatro são as barreiras com que se defronta o teatro amador. Para trazer público ao teatro é preciso formá-lo e informá-lo. Nessa tarefa, os grupos de teatro amador encontram-se em posição privilegiada na medida em que surgem directa e naturalmente no seio do potencial mas não efectivo espectador, revelando-se com maior proximidade relativamente a este.

c) integração da comunidade universitária

Tomando consciência de que a comunidade universitária vive num meio que muito bem conhece e a recebe, é tempo de fazer o caminho inverso: dar à cidade que acolhe a Universidade oportunidade de a conhecer e de a viver.
Por isso, o Grupo de Teatro da FDUP, constituído por alunos, antigos alunos e docentes da Faculdade, propõe-se servir como elo de ligação entre a Universidade do Porto e a Cidade Invicta, dirigindo o produto do seu trabalho não só ao público universitário, mas também a todos os habitantes da área metropolitana do Porto.
Ainda neste sentido, o Grupo tenciona estabelecer protocolos de colaboração em áreas técnicas do teatro, tais como cenografia, som e luz e figurinos, com Escolas profissionais e técnicas na área do espectáculo da cidade do Porto e com as Faculdades de Arquitectura e Belas Artes da Universidade do Porto.

Trabalhos apresentados


Free Flow
Encenação: Jorge Levi
30 de Abril de 2000, no Balleteatro Auditório

Miscelânea Poética
Encenação: Alfredo Martins
23 de Maio de 2000, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto

O Processo, de Franz Kafka
Encenação: Cláudia Marisa;
15 e 16 de Dezembro de 2000, no Teatro Latino, Porto.
Reposição: 15 e 16 de Março de 2001, no auditório da Academia Contemporânea do Espectáculo, Porto, 19, 20 e 21 de Maio de 2001

A Medeia, de Eurípides
Encenação: Roberto Merino
6 a 8 de Dezembro de 2001, no Teatro Latino, Porto.
Reposição: 22 de Maio de 2002, no T.Zero.Com , Porto, no âmbito do “Pó de Palco – I Festival de Teatro Universitário do Porto”

Sono Lento
Encenação: Alfredo Martins
12 a 14 de Dezembro de 2002, Teatro da Vilarinha, Porto

Mulher ao espelho
Encenação: DireitoàCena
17 e 18 de Maio de 2004, Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

Biblioteca Infernal, de Zoran Zivkovic
Encenação: DireitoàCena
23, 24 e 25 de Outubro de 2006, Biblioteca Prof. Doutor Jorge Ribeiro de Faria na FDUP


Outras actividades
Organização de noites de poesia e de idas colectivas ao teatro.
Organização de workshops e actividades de formação.
Publicação de um boletim informativo, intitulado Sobre teatro ... um pouco.

O Grupo de Teatro é "apadrinhado" pelo Dr. Laborinho Lúcio.


Fizeram já parte do direitoàcena:

Alexandre Venade, Alfredo Martins, Ana Campos Pinto, Ana Pires, Angela Pinto, António Matos, Carlos Oliveira, Cláudia Bonucci Pereira, Claúdia Linhares, Diogo Feio, Inês Folhadela, Joana Guimarães, José Reis, Filipe Gabriel, Filipe Gaspar, Manuel Luis Gonçalves, Marta Palmeirão, Nuno Mendes, Pablo de Dios Crespo, Patricia Santos, Rui Cunha, Rute Almeida, Sofia Ramalho, Tomásia Moreira.

Não esquecemos a colaboração de:

João Fontes e Bruno Santos (Esmae), Luz e Som
Alunos do 2.º ano do curso superior de arquitectura da Escola Superior de Artes do Espectáculo e Prof. Telmo Castro, Maquetas de cena
Afonso Bianchi (FDUP), Luz e Som

Está na calha um trabalho sobre a Obra de Fernando Pessoa, a apresentar em Abril de 2008.

(lbc)